22.11.10

Inspire, expire, apaixone-se: relatos sobre uma aula de meditação por Pagan Kennedy*

Imagem Ilustrativa
No corredor da frente da casa vitoriana havia um aviso plastificado que dizia “Sapatos” e, debaixo dele, uma fileira de sandálias de couro Birkenstocks e tamancos Danskos ao longo da parede. Eu podia ouvir vozes vindas do salão de meditação no andar de cima, então imaginei que as pessoas já estavam se acomodando. Sentei-me e tirei minhas botas, desejando que cada objeto tivesse um aviso. Se meu ex-namorado tivesse usado um aviso na noite anterior dizendo “ex-namorado” eu não teria dormido com ele.

Subi as escadas e tentei abrir a porta sem fazer barulho. Do lado de dentro, duas dúzias de pessoas estavam sentadas sobre almofadas. Era o mesmo tipo de gente que você encontra numa livraria – muitos óculos, blusas de lã grossas, bolsas de laptop. Algumas ainda cochichavam, mas percebi que a sala estava prestes a entrar num transe de silêncio majestoso. Então me apressei para juntar-me aos demais.

Sentada de pernas cruzadas, com as palmas das mãos voltadas para cima, comecei a me debater com o básico da meditação Vipassana, tentando prestar atenção na minha respiração à medida que ela passava pelas narinas. “Vipassana” vem do Pali e quer dizer “insight”, mas aqui em Cambridge, Massachussetts, o termo tem outra conotação – um certo estilo excessivamente educado da Costa Leste de se sentar sobre um travesseiro.

Numa plataforma, o professor relaxava em seu banco de meditação, usando um casaco surrado da Patagônia, com o cabelo grisalho preso num nó. “Durante as próximas oito horas, vocês não dirão uma palavra”, ele disse animadamente. “Todos lembraram de trazer um lanche?”

Naquele ponto da minha vida eu nunca havia experimentado um dia inteiro de meditação. Eu fumei como uma chaminé entre vários namoros porque não tinha a mínima ideia de como ficar sozinha. Eu odiava o lado gelado da cama e os cabides vazios que faziam barulho no guarda-roupa. E foi por isso que comecei a meditar. Pensei em tentar me envolver com a solidão da mesma forma como se entra no mar, acostumando-me aos poucos à água fria – primeiro os pés, depois os tornozelos, depois as pernas.

Hoje seria o primeiro dia que eu mergulharia a cabeça. Eu estava aterrorizada. Mas depois de praticar Vipassana por alguns meses, eu também sabia como lidar com aquele terror: eu colocaria meu medo numa vitrine, como se fosse um diamante, e acenderia a luz sobre ele. Inspirando. Expirando. E foi isso que fiz por horas, até me coçar de tédio.

Eventualmente, permiti a mim mesma espionar as outras pessoas na sala, com os ombros enrolados em cobertas, as mãos abertas, rostos desprovidos de expressão. Foi quando o notei a algumas almofadas de distância: um homem alto e magro com uma camisa de abotoar, cabelos loiros sobre as orelhas delicadas. Era difícil ver seu rosto – eu estava sentada atrás dele – mas pude ver que ele usava óculos com armação fina consertada com fita-crepe. Suas calças de veludo cotelê estavam gastas nos joelhos. Seu pulso aparecia através da manga, adoravelmente magro e delicado.

Ele parecia estar colado com fita-crepe e trapos, e também achei aquilo adorável. Naquele ponto, é claro, eu já tinha começado a inventar uma história sobre ele. Ele administrava um abrigo para sem-teto ou, melhor ainda, um abrigo para cães. Ele lia até tarde da noite, debruçado sobre antigos romances russos.

Fechei meus olhos e tentei retomar o ritmo da minha meditação. Mas podia senti-lo perto de mim queimando como um forno a lenha. Parecia que ele também estava consciente da minha presença, como se nossos pensamentos estivessem entrelaçados no ar sobre as cabeças dos outros meditadores. Mas é claro que isso era uma ilusão. Apaixonar-se por alguém na sala de meditação acontece com tanta frequência que alguns budistas têm um nome para isso: o Romance Vipassana (ou RV, abreviando).

Minha amiga Alice me alertou sobre essa armadilha da mente depois de voltar de nove dias de meditação silenciosa em Berkshires. “Todo mundo que medita eventualmente tem um RV”, disse ela. “O meu foi realmente tórrido.”

No primeiro dia ela se apaixonou por um cara duas almofadas à frente por causa da forma poética como ele dobrava seus dedos. Ela passou horas imaginando como o seduziria. No segundo dia ela planejou o casamento deles, decidindo servir um bolo vegan e outro como creme amanteigado.

“E nesse ponto você nunca tinha falado com o cara?”, perguntei.

“Nenhuma palavra”, disse ela.

No quarto dia, ela já o odiava. Ela detestava suas mãos; o jeito extravagante com que ele dobrava os dedos parecia pretensioso. E simplesmente assim, seu Romance Vipassana se foi.

“Quando acontecer com você”, aconselhou Alice, “apenas lembre-se de respirar. Apenas observe.”

Agora, na sala de meditação, eu tentava seguir suas instruções, voltando minha atenção para o espaço entre as minhas narinas. Agora, aqui, hoje eu tinha a chance de dar um pequeno passo em direção à liberdade mental. Eu aprenderia a resistir ao RV.

O professor tocou um gongo; era hora do almoço. “Lembrem-se”, disse ele, e então colocou um dedo sobre os lábios, lembrando-nos de nosso voto de silêncio de um dia inteiro.

Levantamo-nos de nossas almofadas e fizemos uma fila na porta. O homem de óculos colado com fita crepe entrou na fila um pouco atrás de mim. Seu olhar parecia esfregar meu pescoço. “Não é interessante como minha mente cria essas alucinações?”, obriguei-me a pensar. “Parece que ele está me devorando com os olhos. Mas isso é apenas uma ilusão.”

Nós descemos as escadas em fila. Eu fiquei tentada a ficar pela cozinha, onde o Óculos-Colado estava de pé num canto, esperando o chá. Eu poderia tentar trombar com ele, ou dar um sorriso. Mas em vez disso andei até a copa e sentei-me numa das longas mesas próximas a uma mulher com jeito de avó que comia numa tigela de Tupperware.

Eu havia dado minha primeira mordida no sanduíche de homus quando ouvi o barulho da cadeira. Levantei os olhos. O Óculos-Colado olhou de volta para mim. Ele sentou com seus braços sobre a mesa. Ele não tinha um sanduíche. Nem chá. Os óculos de aro fino estavam tortos em seu rosto. Ele era bonito da mesma forma que um herói num romance – ou seja, meio borrado. Foi sua mão que observei com detalhe – os longos dedos ossudos e marcas de caneta no polegar, como se ele tivesse passado muito tempo tomando notas.

Ele se inclinou mais perto. “Vamos sair daqui”, sussurrou.

Eu assenti. Essa reviravolta parecia predeterminada, e eu estava disposta a descobrir o que aconteceria em seguida. Nós caminhamos entre as mesas. Os outros não pareceram perceber que estávamos indo embora – talvez tenham assumido que éramos um casal. Óculos-Colado parou diante do sinal que dizia “Sapatos” e calçou o que pareciam ser chinelos elegantes cinza escuro. Eles pareceram mágicos para mim. Eu tentei me equilibrar com uma bota só, enquanto segurava um ataque de risos.

Finalmente nós fomos parar na rua, a cidade em erupção à nossa volta. Nós corríamos e dávamos risada. No glorioso mundo não-budista, os carros buzinavam e um homem gritava no celular.

Óculos-Colado andou mais devagar para que eu pudesse alcançá-lo. “Quem é você?”, eu perguntei, ainda dando risada.

Ele me disse que trabalhava meio período no porão de um museu. Ele odiava seu chefe. Tinha passado por uma terapia intensa no ano anterior.

“Quantas vezes por semana?”, perguntei.

“Quatro”.

Olhei de soslaio para ele e vi as canetas enfiadas no bolso de sua calça – não uma caneta, mas várias, todas juntas. Foi esse estranho detalhe que me fez perceber o quão louco ele poderia ser.

“Então o que o deixa feliz?”, perguntei, tentando persuadi-lo a ser adorável novamente.

Mas tudo o que ele fez foi dar de ombros.

“Difícil escolher?”, disse esperançosa.

“Sim”. Ele soava moroso. “Foi um ano ruim”. Ele parecia perder o vigor.

Nós havíamos agora parado na calçada, sem saber para onde iríamos. Eu notei seus sapatos. Tinha me enganado quanto a eles. Não eram chinelos mágicos – eram apenas um par de tênis comuns com cadarços cor de água suja.

“Deveríamos voltar”, eu disse.

“OK.”

E assim nos voltamos furtivamente para o centro de retiros.

Naquela noite depois do ensinamento final – sobre a certeza da morte – nós meditadores fizemos uma fila até o hall de entrada e nos aglomeramos na frente do armário de casacos. Óculos-Colado me alcançou quando eu estava com um braço enfiado na manga da minha parka. Antes que eu tivesse tempo, eu estava de pé na sua frente, agradecendo educadamente o que ele havia oferecido: um pedaço de folha de caderno e uma caneta de madrepérola. Eu sempre quis me apaixonar por um homem que tivesse uma caneta assim. Rabisquei um número de telefone para ele.

“Tchau”, eu disse, e então andei até em casa sob a luz da lua. Sentia-me muito bem. O número de telefone que eu havia dado a ele era falso. Era, eu pensei, o meu presente para nós dois – silêncio e liberdade.

E foi assim que eu aprendi a arte do Divórcio Vipassana.

*Pagan Kennedy mora em Somerville, Massachussetts. Ela é autora de dez livros

Tradução: Eloise De Vylder