1.8.10

Amar é amar, e dar é dar. (A boa autoestima)

Por Flávio Gikovate *

Solidariedade é um sentimento humano sofisticado, através do qual nos integramos em uma dada comunidade. Nos sentimos parte dela, corresponsáveis por seu destino e dispostos mesmo a morrer em sua defesa. Nossa identidade se afrouxa, de modo que nos tornamos antes uma ínfima parte daquele todo e depois nós mesmos. Nosso destino se identifica com o destino daquele grupo. O sentimento pode nos fazer integrado a toda a humanidade, o nos permite entender as palavras do poeta quando ele fala "desses pobres de nós seres humanos".

Outras vezes usamos, inadequadamente, a expressão amor ao próximo para descrever situações nas quais não estamos integrados mas estamos preocupados com as pessoas que nos cercam. Compaixão descreve um sentimento derivado de nos sentirmos sofridos em virtude de nos identificarmos com o sofrimento daqueles que estão à nossa volta. Determina um desejo de ajudar aqueles que estão necessitados. É um sentimento vivido por alguém que se encontra em uma boa condição mas que se incomoda com o fato dela não ser compartilhada por outros membros do grupo.

Na solidariedade, somos parte do grupo e nos sentimos integrados nele. Na compaixão, estamos fora do grupo e sofremos com as dores dele. Em nenhum dos casos cabe a expressão "amor ao próximo", quase sempre usada quando nos preocupamos com o destino daqueles que nos cercam e principalmente quando nos preocupamos em ajudar os que estão próximos. Daí outra confusão, através da qual se costuma dizer que "amar é dar". Amar é amar e dar é dar! Trata-se de dois verbos com significado completamente diferente.

Amor próprio e autoestima derivam da idéia de que existiria um efetivo amor por si mesmo, o que contraria frontalmente a definição de amor que venho defendendo há mais de 30 anos anos. Acontece que existe alguma coisa que sentimos em relação a nós mesmos. Só que não se trata de um ingrediente amoroso e sim sexual. Não existe amor por si mesmo mas existe um importante elemento autoerótico. Existe um tipo de excitação sexual que deriva de nos sentirmos importantes, valorizados, olhados com admiração. Corresponde ao que chamo de vaidade. Vaidade é conceito mais útil do que narcisismo, já que esse último implica na continuidade da confusão entre sexo e amor. Narcisismo não seria amor por si mesmo mas sim erotismo focado em si mesmo para esse fim, a palavra vaidade presta melhores serviços.

Por força da interferência da razão, a vaidade também está a serviço da preservação da nossa integridade. Ela nos protege contra ofensas sutis à nossa pessoa, aquelas que ferem nossa vaidade. Ela nos protege porque, quando ofendidos , sentimos o oposto da sensação positiva da vaidade, que é a humilhação. Humilhação é a dolorosa sensação que vivenciamos quando somos depreciados, olhados com desprezo ou desdém.

Dizemos que temos amor próprio quando nos insurgimos contra situações de humilhação. O termo ideal para substituir amor próprio talvez seja orgulho - ou seria honra? Nos sentimos ofendidos e gravemente feridos quando somos tratados de modo desconsiderado, o que nos provoca a sensação de humilhação, o que ofende nosso orgulho. O fenômeno não é amoroso e a ofensa nos incomoda mesmo quando vem de alguém que mal conhecemos. É claro que nos magoa mais quando somos agredidos por aqueles que nos são caros e mais ainda pelo amado.

Autoestima, apesar de estima significar afeição, diz respeito ao juízo que fazemos de nós mesmos. Nossa autoestima é boa quando somos e agimos de uma forma que nós próprios aprovamos a autoestima é baixa quando nós mesmos não estamos concordando com nossos procedimentos. É claro que a opinião dos outros pode interferir em nossa autoestima. Porém, um elogio ou qualquer ação externa que nos enalteça não nos provocará nenhum efeito se não estivermos satisfeitos com nossas posturas. É fato também que uma crítica vinda de fora, dirigida a quem já está tendo um juízo negativo de si mesmo, será muito mais facilmente absorvida.

Não consigo pensar numa boa expressão que substitua "autoestima" com vantagem. Reafirmo, porém, que não se trata de gostar de si mesmo e que uma boa autoestima depende de estarmos vivendo de acordo com nossas próprias convicções.

O que pensar quando se ouve uma multidão de indivíduos repetir, sem qualquer esforço reflexivo, que "para ser capaz de amar uma pessoa tem que, antes, amar a si mesma"? A frase lembra aquela que se lê na Bíblia, que pede que amemos o próximo como a nós mesmos. Não sou um bom entendedor do texto bíblico mas creio que o termo amor foi usado num sentido muito mais amplo do que descrevi nesse texto. Penso que o texto bíblico pede às pessoas que tratem seus semelhantes com a consideração, respeito e zelo que esperam ser tratados. A reflexão é antes de tudo moral, na qual uma pessoa não deveria se atribuir mais direitos do que aqueles atribuídos às outras. Não creio que esteja se referindo ao relacionamento íntimo entre duas pessoas.

Por outro lado, se refletirmos sob a ótica da psicanálise, o narcisista aquele que, segundo essa teoria, ama a si mesmo não é capaz de amar outras pessoas. O amor se concentra em si mesmo por medo de se deslocar em direção ao outro. Medo sim, pois sabemos que o amor envolve risco de sofrimento derivado de uma eventual perda sabemos que o narcisista é criatura imatura e que, por tolerar mal dores e frustrações, não se arrisca. Assim, não tendo capacidade para amar, apenas espera receber amor dos outros, além de amar a si mesmo.

Essa também não é minha convicção, já que pessoas assim imaturas e medrosas não têm boa autoestima. Fingem estar bem consigo mesmas mas é só aparência. No fundo, sabem que são um blefe e por isso mesmo se tornam invejosas daqueles que são mais corajosos. Assim, não creio que se amem, de modo que, mesmo se respeitarmos as teses psicanalíticas, não deveriam ser chamadas de narcisistas. Se existisse amor por si mesmo, como já escrevi, provavelmente não existiria o amor como o vivenciamos. Quem é corajoso, ousa amar e tenta aliviar o desamparo através do aconchego que a presença do outro determina.

Quem tiver boa autoestima - e isso é muito diferente de amar a si mesmo - será, isso sim, capaz de escolher melhor o parceiro, uma vez que se considerará com direito a uma companhia à altura do julgamento que faz de si mesmo.

*Flávio Gikovate é médico e psiquiatra, colaborador de diversos jornais e revistas e autor de Falando de Amor e O amor nos anos 80.