Um dos instrumentos mais importantes de defesa do organismo. Assim pode ser resumida a dor. Se quebrarmos o braço, sentimos dor, e assim sabemos que não devemos usá-lo para não piorar a fratura. Se encostarmos em uma superfície quente, a variação de temperatura nos faz tirar a mão, evitando que o calor destrua a derme. Se há infecção em algum órgão, cólicas intensas avisam que algo errado acontece. Sem a dor, seria impossível manter a integridade de nosso corpo. Em alguns casos, porém, esse orquestrado sistema de defesa sai do eixo. Em vez de proteger, vira uma ameaça. Por mecanismos complexos, a dor, que deveria ser apenas um alerta, torna-se perene, constante. Transforma-se na chamada dor crônica – aquela que persiste por mais de três meses ou por um período superior ao calculado para a recuperação do paciente. Além de desafiador, o problema tem grande extensão. A Organização Mundial da Saúde calcula que, no mundo, a cada cinco pessoas, uma sofra com a dor permanente.
A urgência em dar alívio a essa população tem feito com que, no mundo todo, cientistas se entreguem à busca de uma melhor compreensão dos mecanismos que levam às sensações dolorosas e de novas formas de intervir nesse processo quando ele se torna prejudicial. Se por um lado ainda há muito o que ser descoberto, por outro, os avanços da ciência já são capazes de garantir a uma boa parcela desses pacientes a possibilidade de uma vida sem dor.
Marisa e Reinaldo estão sendo estudados. Eles não sentem dor
Pode parecer paradoxal, mas algumas das respostas têm sido dadas a partir de pesquisas com pessoas que simplesmente não sentem dor. Trabalho desse gênero está sendo realizado no Centro de Dor do Hospital das Clínicas de São Paulo (HC-SP). Entre os indivíduos estudados estão os irmãos Marisa Helena, 24 anos, e Reinaldo Martins, 30 anos. Os dois moram em Angatuba (SP). Suas histórias evidenciam a importância da dor para garantir uma vida segura. Mãe de duas meninas, Marisa precisou ser acordada durante seu segundo parto: o bebê já estava nascendo, e ela permanecia dormindo. Reinaldo teve de amputar a perna após uma grave inflamação no joelho. Ele não sentiu os tecidos infeccionarem. Até coisas banais, como comer, oferecem risco. Eles não percebem, por exemplo, quando põem um alimento muito quente na boca e só sabem que morderam a língua quando sai sangue. Sem o aviso da dor, os tecidos do corpo de Marisa e Reinaldo estão constantemente ameaçados. É preciso uma rotina de cuidados redobrados que inclui uma inspeção diária em busca de possíveis lesões. Quando a ameaça não está visível, o problema fica mais sério. No último mês, Marisa foi ao hospital após sentir febre por dias seguidos. Nada lhe doía. Os exames, porém, revelaram uma infecção urinária e um cálculo biliar. “Eu queria sentir dor, mesmo que fosse um pouquinho”, diz a agricultora.
A investigação com os dois irmãos rendeu informações importantes. Soube-se que eles são portadores de uma alteração genética que atinge os canais de sódio presentes nos nervos periféricos. Esses canais são espécies de fechaduras existentes na superfície das células (receptores) cuja função, nesse caso, é a de permitir a entrada do mineral dentro das estruturas. A mutação genética prejudica seu funcionamento. “E isso impede a transmissão dos estímulos dolorosos”, explica Daniel Campi, coordenador do centro de estudo do HC-SP.
A constatação confirma que um dos caminhos que devem ser investigados é exatamente esse, o dos receptores envolvidos no processamento da dor. Eles são diversos e, quando funcionam de modo descompassado, geram sofrimento. Até os anos 1990, era conhecido apenas o papel dos receptores de opioides – substâncias analgésicas. De lá para cá, a lista cresceu, com a inclusão dos canais de cálcio, por exemplo, e, também recentemente, dos receptores canabinoides. Assim como os opioides, eles têm efeito analgésico. Se há problemas nessas portas de entrada das células, pode-se ter maior sensibilidade à dor.
A descoberta dessa gama de receptores deu origem a uma nova forma de tratamento. Hoje, em casos de dor neuropática (originada no sistema nervoso), é possível usar anticonvulsivantes, como a gabapentina, que agem sobre os canais de cálcio.
A descoberta dessa gama de receptores deu origem a uma nova forma de tratamento. Hoje, em casos de dor neuropática (originada no sistema nervoso), é possível usar anticonvulsivantes, como a gabapentina, que agem sobre os canais de cálcio.
O problema é que essas medicações atuam sobre vários receptores celulares, não apenas sobre os relacionados à dor. Por isso, muitos pacientes sofrem efeitos colaterais como sonolência, fadiga e ganho de peso. Felizmente, há iniciativas para acabar com problemas desse tipo. Na University British Columbia, no Canadá, os cientistas trabalham na criação de uma droga que atue apenas sobre a fechadura desejável. Eles estão na última fase das pesquisas em humanos para testar uma terapia que bloqueia os canais de cálcio tipo N, um dos responsáveis por controlar como o estímulo doloroso chega ao cérebro. “Esperamos maior efetividade e menos efeitos indesejados”, disse à ISTOÉ Terrance Snutch, líder do estudo.
Pelo mesmo caminho segue o estudo de Marcus Vinícus Gomez, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais. No caso brasileiro, a solução vem do reino animal: Gomez está trabalhando uma toxina purificada extraída de uma aranha (a Phoneutria nigriventer). Inspira-se em outra toxina hoje já transformada em medicamento, o ziconotide, produzido a partir de uma substância extraída de um caramujo marinho e considerado o maior avanço dos últimos 20 anos no tratamento da dor neuropática grave. “Em modelos animais, demonstramos que a toxina induz boa analgesia.”
Quando comparado à morfina, o composto da aranha apresenta um bloqueio da dor mais eficiente, um tempo de ação seis vezes maior e a vantagem de, ao contrário da morfina, não criar tolerância – fenômeno pelo qual as doses do medicamento precisam ser constantemente aumentadas para garantir resultados.
O impacto da genética também tem ganhado destaque. Os estudos recentes demonstram que algumas pessoas não produzem as substâncias moderadoras da dor – espécies de analgésicos naturais fabricados pelo nosso organismo – em razão de problemas nos genes responsáveis por determinar sua fabricação. “A identificação desses genes possibilita a busca por terapias que atuem diretamente sobre eles”, diz Fabíola Minson, coordenadora da equipe de tratamento da dor do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Um exemplo é o gene PENK, responsável pela produção do composto analgésico encefalina. Na Universidade de Michigan (EUA), pesquisadores conduzem um trabalho em humanos cujo objetivo é restaurar o funcionamento correto do gene em indivíduos nos quais ele não atua como deveria.
O impacto da genética também tem ganhado destaque. Os estudos recentes demonstram que algumas pessoas não produzem as substâncias moderadoras da dor – espécies de analgésicos naturais fabricados pelo nosso organismo – em razão de problemas nos genes responsáveis por determinar sua fabricação. “A identificação desses genes possibilita a busca por terapias que atuem diretamente sobre eles”, diz Fabíola Minson, coordenadora da equipe de tratamento da dor do Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Um exemplo é o gene PENK, responsável pela produção do composto analgésico encefalina. Na Universidade de Michigan (EUA), pesquisadores conduzem um trabalho em humanos cujo objetivo é restaurar o funcionamento correto do gene em indivíduos nos quais ele não atua como deveria.
Na verdade, o que os estudos demonstram de forma evidente é que as origens da dor crônica são complexas. “Não existe apenas uma causa nem um tratamento único e eficaz para todos os casos”, afirma Karine Leão Ferreira, diretora da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor. Nessa linha de raciocínio, um dos achados mais interessantes diz respeito ao peso das atitudes e dos sentimentos na maneira como sentimos a dor e reagimos a ela. Levar em conta esses componentes tem-se mostrado essencial para compreender por que alguns sofrem mais do que outros.
Estudos recentes lançam luz sobre essa área. O primeiro, feito no Hospital Universitário de Split, na Croácia, mostra como os exemplos interferem no modo como cada um reage à dor. Analisando 285 voluntários – entre pacientes de dor crônica, seus cônjuges e filhos adultos –, os pesquisadores observaram que a maneira pela qual os filhos respondem à dor é influenciada pela forma com que os pais reagem. Quanto mais eles supervalorizam o problema, mais dor o outro relata. Quanto menos importância dão ao caso, mais rápido o desconforto passa. “Isso confirma que o modelo de dor é biopsicossocial e que apenas termos biológicos ou médicos não a explicam”, disse à ISTOÉ Lívia Puljak, vice-reitora de pesquisa da universidade croata.
Estudos recentes lançam luz sobre essa área. O primeiro, feito no Hospital Universitário de Split, na Croácia, mostra como os exemplos interferem no modo como cada um reage à dor. Analisando 285 voluntários – entre pacientes de dor crônica, seus cônjuges e filhos adultos –, os pesquisadores observaram que a maneira pela qual os filhos respondem à dor é influenciada pela forma com que os pais reagem. Quanto mais eles supervalorizam o problema, mais dor o outro relata. Quanto menos importância dão ao caso, mais rápido o desconforto passa. “Isso confirma que o modelo de dor é biopsicossocial e que apenas termos biológicos ou médicos não a explicam”, disse à ISTOÉ Lívia Puljak, vice-reitora de pesquisa da universidade croata.
Na Universidade de Queensland, na Austrália, os cientistas demonstraram que o ser humano pode interpretar a dor como uma espécie de penitência. Os voluntários tinham de pôr a mão em um balde com gelo. Quando imaginavam situações em que se sentiam culpados, resistiam por mais tempo ao frio. Para os pesquisadores, quando as pessoas se sentem culpadas, são capazes de se submeter à dor como forma de provação. Isso, como mostrou o estudo, as faz sentir menos culpadas pelo erro cometido. “Aprendemos desde cedo que a dor pode ser usada para significar conceitos abstratos, como o de punição”, disse à ISTOÉ Brock Bastian, líder da pesquisa.
Parte dessa conexão pode ser explicada pelo fato de que o processamento da dor e das emoções passa quase que pelos mesmos circuitos cerebrais. “Há evidências de que a dor causada por uma rejeição, por exemplo, ativa as mesmas áreas do cérebro que a dor física”, explica Bastian. Não é por outra razão que hoje a ciência aprofunda os estudos nesse campo e busca, nos sentimentos, uma terapia complementar contra o sofrimento. Na Universidade de Stanford (EUA), os pesquisadores apostam no poder do amor. De acordo com pesquisa da instituição, sentimentos apaixonados, fortes, trazem alívio, e em uma intensidade semelhante à proporcionada por analgésicos. “Quando a pessoa está nesse estado de paixão, há alterações que terão impacto na sua experiência de dor”, disse Sean Mackey, coordenador do trabalho.
Para realizar o experimento, os cientistas selecionaram 15 estudantes que se confessaram apaixonados e cujas relações não tinham mais do que nove meses de duração. Os voluntários foram submetidos a dois tipos de testes. No primeiro, olhavam para uma foto da pessoa amada enquanto recebiam um estímulo doloroso. No segundo, em vez da foto, eram estimulados a pensar em algo diferente, para se distrair enquanto sentiam dor. Nos dois, suas reações cerebrais eram acompanhadas por exames de imagem.
As duas estratégias aliviaram o desconforto. Mas, enquanto a distração acionou uma área do cérebro relacionada à cognição, o amor estimulou a atuação das regiões associadas à recompensa. “Parece que ele tem ação sobre áreas primitivas, ativando estruturas mais profundas que podem bloquear a dor em níveis similares aos produzidos pelos analgésicos opioides”, explicou à ISTOÉ Jarred Younger, um dos responsáveis pela pesquisa.
Um desafio que permanece a instigar os especialistas é a criação de formas mais eficazes de diagnóstico. Um estudo publicado no último mês, realizado por meio de uma parceria entre a Universidade de Stanford e o Hospital Mãe de Deus, de Porto Alegre, revelou bons resultados com a combinação de um equipamento já existente (o PET/CT, usado para o diagnóstico por imagem) com uma substância de contraste conhecida como fluoreto, capaz de sinalizar as áreas em que há inflamação ou alteração óssea. “O método permite enxergar exatamente por que dói e onde dói”, explica o radiologista Marcelo Abreu, do hospital gaúcho.
Outra novidade, disponível no HC-SP, é o aparelho que localiza o nervo cuja comunicação com o cérebro está alterada, o que ajuda na intervenção terapêutica.
Tratar a dor traz alívio e reduz a chance de sequelas difíceis de apagar. Quando crônica, ela pode causar a perda de neurônios nas regiões responsáveis por seu processamento, o que prejudica inclusive nossa forma de lidar com as emoções. “Essas mudanças predispõem o paciente a desenvolver deficiências cognitivas, ansiedade e depressão”, disse à ISTOÉ Laura Stone, da Universidade McGill, no Canadá. Mas um trabalho do qual a pesquisadora participou trouxe uma boa notícia: as alterações cerebrais desaparecem com o tratamento certo, mesmo que a dor tenha durado muito.“Tivemos voluntários que sofriam havia mais de 20 anos”, conta Laura. “E o cérebro se recuperou, apesar do longo tempo.” Para a especialista, essa descoberta traz uma importante mensagem a médicos e pacientes. “Nunca é tarde demais para tratar a dor.”
REVISTA ISTO É DE 01/07/2011