A tarefa do cuidar e as expectativas sociais diante de um envelhecimento demográfico: a importância de ressignificar o papel da família
Simone Caldas Tavares Mafra
Universidade Federal de Viçosa, Centro de Ciências Humanas Letras e Artes, Departamento de Economia Doméstica. Viçosa, MG, Brasil
RESUMO
No Brasil, como nos demais países, o processo de envelhecimento da população é crescente, trazendo consequências na (re)organização familiar e do indivíduo, interferindo no estilo de vida – comprometendo a qualidade de vida familiar e individual – quanto no bem-estar social dos envolvidos. Estudos como o SABE sinalizam a realidade vivenciada por famílias do município de São Paulo quanto à necessidade de se organizarem para suprir as demandas assistenciais de seus idosos, considerando aqueles que apresentam comprometimento funcional. Esta pode ser a realidade do Brasil, que pode ter maior número de famílias em situações de maior constrangimento se comparadas à realidade estudada. Para tanto, buscou-se discutir o envelhecimento populacional e as relações de cuidado no âmbito da família, considerando os conflitos vivenciados pelas famílias nesse processo. Os estudos evidenciaram a necessidade de garantir o processo de empoderamento das famílias que vivenciam tal realidade para que estas possam administrar melhor os processos decisórios, na atividade de cuidar e ser cuidado, de maneira a garantir melhor qualidade de vida para os envolvidos.
Palavras-chave: Cuidadores. Envelhecimento da população. Envelhecimento Demográfico. Serviços de Saúde. Saúde do idoso. Idoso fragilizado.
INTRODUÇÃO
No Brasil, como na maioria dos demais países, o processo de envelhecimento da população é crescente, trazendo consequências para a (re)organização familiar no cuidado com aqueles que demandam maior assistência e para o indivíduo idoso, para exercitar diuturnamente seu direito de ter uma vida com autonomia e independência. Esses fatos podem interferir tanto no estilo de vida – comprometendo a qualidade de vida familiar e individual – quanto no bem-estar social dos envolvidos.
Estudo desenvolvido no município de São Paulo buscou mostrar a realidade vivenciada pelas famílias e indivíduos no que se refere à necessidade de se organizarem para suprir as demandas assistenciais a seus idosos, e estes vivenciarem sua independência cotidiana, considerando aqueles que apresentam comprometimento de seu desempenho funcional.1
O referido estudo, embora centrado no município de São Paulo, pode evidenciar uma realidade do Estado brasileiro. Acredita-se que há maior número de famílias em situações de constrangimento, no que se refere ao processo de cuidar e ser cuidado, se comparadas à realidade estudada.1
Sabe-se, no entanto, que a crise do cuidar e ser cuidado pode estar apenas começando, quando a reflexão recai sobre o Estado brasileiro, pois este se encontra em um processo de transição demográfica muito acelerado. Isto tem sido evidenciado em diferentes estudos que mostram que, no Brasil, mulheres em idade fértil têm menos de dois filhos, projeção só esperada para 2045, como evidenciam estudos da Divisão de População das Nações Unidas. Segundo essas análises, em breve sobrarão vagas em escolas de ensino básico e faltarão pessoas para implementar a relação de cuidado/cuidador, com a esperança de vida da mulher brasileira atingindo 80 anos.2
Essa preocupação se justifica pelo fato de que, em geral, a mulher idosa é amparada pela família para efetivação do cuidado, e esta relação não é observada com frequência para o homem idoso. Este se casa novamente, numa situação de viuvez, para estruturar outra perspectiva social de manutenção da independência cotidiana, ou então é encaminhado a ILPIs. Se as famílias brasileiras estão reduzindo o número de filhos e são estes normalmente que se envolverão com o cuidado na família, poderemos inferir que num futuro próximo essa atividade vivenciará momentos de crise no espaço social da família.2
O Brasil caminha para ser um país maduro,2 mas sem maturidade suficiente para conseguir as relaçöes de cuidar e ser cuidado, como é possível concluir. Os estudos chegam a essa constatação, mas fica a pergunta: como ficará o cotidiano desse país maduro? Na saúde, o modelo centrado no atendimento hospitalar não atende às novas demandas do envelhecimento, pois dados revelam que foi reduzido em 10% o relato de doenças crônicas. Ou seja, esse novo Brasil precisa aceitar o desafio de cuidar da saúde e não da doença, amparando a família para esse desafio. Alguns estudiosos colocam a necessidade de tratar de programas assistenciais, como o Bolsa-Família, no âmbito do apoio ao cuidador do idoso, o qual em muitos casos está na própria família.3
Considerando os estudos mencionados, deve-se entender a variável “desempenho funcional”, como sendo: “[...] a capacidade dos idosos de executar atividades básicas da vida diária (ABDV – atravessar um cômodo da casa, comer, deitar-se e levantar da cama, usar o vaso sanitário, vestir-se e despir-se e tomar banho) e atividades instrumentais da vida diária (AIVD – comprar e preparar alimentos, realizar tarefas domésticas leves e pesadas, ir a outros lugares sozinho, usar o telefone, tomar os próprios medicamentos e manejar dinheiro), sendo a limitação funcional (demanda assistencial) definida como sendo a necessidade de ajuda para executar pelo menos uma dessas atividades.1“
Os dados apresentados neste estudo indicam a necessidade de uma ação imediata para instrumentalizar as famílias para a assistência aos idosos, visto que a apresentada pelas famílias se revelou como ineficaz. Entretanto, os autores alertam que “não há no Brasil uma política para suprir tais deficiências” e, com o envelhecimento em processo acelerado, “corre-se o risco de passar, em breve, de insuficiente a caótico”.1
Segundo esta perspectiva, o que fazer? Os dados dos estudos existentes, dentre os quais o SABE (Estudo Longitudinal das Condições de Vida e Saúde das Pessoas Idosas do Município de São Paulo) revelam uma piora da realidade, se forem comparados os dados obtidos em 2000 com os de 2006, * tanto no aspecto da saúde, quanto aqueles referentes à capacidade funcional. Nesta, observa-se piora geral dos índices de desempenho de atividades básicas da vida diária, com aumento dos problemas de saúde, perda da autonomia e, consequentemente, maior demanda de supervisão por parte da família, de instituições e/ou de cuidadores, para a execução das atividades básicas e instrumentais dos idosos.
Os dados apresentados são de grande importância para a implantação de projetos que implementem políticas públicas em prol da população idosa, com as famílias passando a ter mais acompanhamento e informação, enquanto as pessoas idosas adquirem mais acesso à informação para adoção de atitudes preventivas.1 Esses dados são evidenciados também em outros estudos4 da América Latina e Caribe.
Considerando que o estudo SABE foi restrito a um único município brasileiro, são necessárias mais pesquisas para se compreender como as famílias que possuem pelo menos um membro idoso se organizam para garantir o poder de decisão de seus membros, incluindo-se o idoso neste processo. É necessário, pois, entender e analisar as consequências do processo de envelhecimento nas decisões familiares e no ciclo de vida econômico, a fim de avançar o conhecimento científico sobre este aspecto e contribuir para o planejamento e avaliação de políticas públicas voltadas para este público.
PROCESSO DE DECISÃO FAMILIAR E ENVELHECIMENTO
Deve-se atentar ao fato de que acreditar que a decisão familiar de cuidar do idoso dependente ou de transferir esta responsabilidade/atribuição a uma instituição ou a um cuidador pode se basear, principalmente no Brasil, na perspectiva econômica. Nesse momento, verifica-se a decisão da família muitas vezes voltada para a renda do idoso e como esta pode subsidiar sua manutenção em um contexto mais amplo, visto que em alguns casos a renda do idoso é a única renda familiar.
Quando se institui esta realidade, a família passa a se responsabilizar pelo cuidado com o idoso como forma de garantir sua própria subsistência, ocorrendo por consequência a inversão da lógica inicial do ato de cuidar, em que o idoso deixa de ser aquele que deveria ser objeto de cuidado para ser o que garante o cuidado tanto dele quanto de seus familiares. Esses aspectos devem ser considerados prioritários para pesquisas futuras no Brasil, conforme corroboram os estudos de Wong et al,5 os quais ressaltam a necessidade de mais pesquisas para a compreensão do processo de envelhecimento na América Latina.
Considerando-se, por exemplo, a decisão da família pela opção de se responsabilizar pelo cuidar do idoso, esta pode se reverter na instalação de um processo de reestruturação econômica para a mesma. Normalmente, um membro da família precisa se afastar da esfera produtiva (mercado de trabalho/emprego formal) para atuar como “cuidador”, pelo fato de a rede de solidariedade “estruturada” não ser suficiente para suprir as (crescentes) demandas familiares, embora atue como suporte. Outrossim, há de se ressaltar que, dependendo da renda do cuidador, tal arranjo é economicamente desvantajoso para a família. Assim, a opção de institucionalizar o idoso, liberando este membro familiar que atuaria como cuidador para o mercado de trabalho (teoria da troca social), apresenta-se com forte apelo.
O ENVELHECIMENTO NA PERSPECTIVA DEMOGRÁFICA E EPIDEMIOLÓGICA
No mundo todo, se evidencia o processo do envelhecimento populacional, com os idosos constituindo a parcela da população que mais cresce. Dentre estes, mais da metade vive em países em desenvolvimento, onde os programas sociais, políticos e econômicos ainda não responderam aos desafios gerados pelo envelhecimento populacional.6 Enquanto nos países desenvolvidos o aumento da expectativa de vida vem acontecendo há muitos anos, tendo como consequência melhores condições de vida da população, suportada por uma urbanização adequadamente planejada e pelos avanços nas áreas da saúde, habitação, saneamento, meio ambiente, nutrição e oportunidade de trabalho, de maneira contrastante, nos países em desenvolvimento – fenômeno observado desde a década de 1960 – relaciona-se diretamente à queda das taxas de natalidade e mortalidade. Estas são consequência de campanhas sanitárias, de vacinação e de ampliação da atenção médica na rede pública; entretanto, essa nova realidade não vem sendo acompanhada por transformações estruturais que garantam melhores condições de vida.7
Este processo de envelhecimento, grande desafio do mundo atual, afeta tanto países ricos quanto os considerados pobres. O número de pessoas com mais de 60 anos, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), já corresponde a mais de 12% da população mundial, prevendo-se que, até meados deste século, corresponderá a 20% do total. Assim, numericamente, um em cada 10 habitantes do planeta já tem mais de 60 anos, sendo que quase 40% destes são indivíduos com 80 anos ou mais. Até 2050, prevê-se que uma em cada dez pessoas vivendo nos países mais desenvolvidos terá 80 anos ou mais, atingindo, em países em desenvolvimento, a cifra de um em cada 30 indivíduos.8 Além do aspecto mencionado, a Organização das Nações Unidas (ONU)9 estima que, em 2025, o número de pessoas com 60 anos ou mais passará a representar 15,4% da população global. De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no Brasil, até 2020, a população idosa irá compor um contingente estimado em 31,8 milhões de pessoas.
Observando o panorama do processo de envelhecimento da população brasileira, conforme colocado por diferentes estudos, verifica-se que essa transformação foi extremamente rápida, ocorrendo no intervalo de poucas décadas. Embora viesse sendo detectada e anunciada há algum tempo pelos demógrafos, só recentemente a sociedade brasileira começou a tomar consciência de sua extensão e das profundas implicações que irá acarretar em vários aspectos da vida nacional.2,9,10
Nesse contexto, o fenômeno de envelhecimento traz consequências não só para o indivíduo, mas também para a sociedade, merecendo atenção especial dos profissionais que se dedicam ao cuidado dos idosos. Observam-se implicações políticas, sociais e econômicas, que no caso do Brasil atingiu um patamar diferenciado a partir da criação do Estatuto do Idoso em 2003. No entanto, a formulação de políticas de saúde visando a atender às demandas desta faixa etária ainda é tímida, mesmo com o aumento dos investimentos na educação e formulação em nível estadual e municipal dos programas de assistência integral direcionados a esses indivíduos.11
Logo a integração do uso dos recursos disponíveis se torna indispensável para abordar a questão do envelhecimento, pois os serviços de saúde ainda não têm condições estruturais adequadas para atender às necessidades desse grupo em crescimento, que se apresenta como um todo, desorganizado e com baixa resolutibilidade. Agravando esta realidade, a população idosa enfrenta o problema da falta de informação sobre seus direitos, acentuada pela dificuldade de acesso aos serviços demandados, contando ainda com o preconceito e o despreparo dos profissionais que deveriam atender a suas necessidades do dia a dia.12
O PROCESSO DE ENVELHECIMENTO
Do ponto de vista biológico, o processo de envelhecimento caracteriza-se pelo declínio das funções orgânicas e dos sistemas. Este é um processo natural, progressivo e irreversível, que provoca modificações morfológicas, fisiológicas e bioquímicas que se manifestam tanto por mudanças corporais externas (flacidez muscular, rugas, branqueamento do cabelo, entre outros), quanto internas (alterações no metabolismo basal e funcionamento irregular de órgãos vitais, principalmente coração, rins e pulmões)13
Estas transformações orgânicas que comprometem funcionalmente o indivíduo, afetando sua capacidade de se adaptar ao meio ambiente, o tornam mais vulnerável às doenças, com as complicações culminando, boa parte das vezes, com a morte. Estes mecanismos são ainda pouco conhecidos, mas alguns de seus fatores estão associados a padrões genéticos, os quais determinam a duração máxima da vida humana, estimada em 115 anos. Os diversos processos metabólicos envolvidos, ou os produtos desses decorrentes, levam à apoptose ou morte celular programada e, consequentemente, a um estado não funcional dos órgãos e tecidos. Bioquimicamente, a partir destas reações ocorrerá, dentre outros processos, a formação de radicais livres, provocando alterações celulares e teciduais próprias do envelhecimento, como: (a) alterações funcionais de enzimas, lipídios, colágeno, hormônios, DNA e RNA; (b) declínio da imunidade celular e humoral, o que facilitará maior incidência de doenças; e (c) alterações nas moléculas de colágeno, que afetará a permeabilidade e os processos de difusão na membrana celular, resultando na troca insuficiente de nutrientes entre a célula e vasos sanguíneos.14 Todas estas alterações acarretam perda da capacidade funcional, contribuindo para o decréscimo ou perda da autonomia e independência do idoso.
Sob uma perspectiva social, o envelhecimento está relacionado com a perda de autonomia e independência, limitando a capacidade de autocuidado, e consequentemente, comprometendo a qualidade de vida do indivíduo. Gera, a partir desse processo, relações de dependência que interferem acentuadamente nos processos de interação social, sobretudo no âmbito familiar. Esta autonomia pode ser definida como o exercício da capacidade de decisão e de comando, podendo ser mantida mesmo quando o individuo é dependente. Assim, entende-se por dependência o estado no qual o indivíduo idoso é incapaz de funcionar física ou mentalmente sem a ajuda de outra pessoa.15
QUALIDADE DE VIDA NA VELHICE E NOS DIAS ATUAIS
Nesse contexto, a qualidade de vida na velhice está diretamente relacionada aos princípios de autonomia, autodeterminação e independência. Por isso, há necessidade de se incrementar estudos e esforços nas políticas sociais e de saúde, de maneira a manter e, se necessário, restaurar os princípios de autonomia, autodeterminação e independência do idoso. Isso se apresenta como uma questão que, se não for considerada, acarretará conflitos familiares e sociais cada vez mais graves.
São considerados motivos de alerta os aspectos sociais relacionados ao envelhecimento, visto serem determinados pela diminuição da capacidade de adaptação às mudanças, nesse momento histórico em que os avanços tecnológicos e a construção de novos conhecimentos têm determinado transformações de maneira muito rápida em nossa sociedade, exigindo a introdução de novos conceitos e de modos de viver, caracterizados basicamente por uma grande flexibilidade, novos processos e produtos. Estes novos conceitos e modos de viver, no entanto, são caminhos que o idoso nem sempre pode percorrer. Como conseqüência, há o agravamento de sua marginalização familiar e social.16
Essa marginalização e as modificações observadas no status social e no relacionamento do idoso com outras pessoas ocorrem como consequência das seguintes questões: (a) crise de identidade, desencadeada pela perda dos papéis sociais; (b) mudanças de papéis nos meios familiar e comunitários, exigindo desenvolvimento da capacidade de adaptação dos envolvidos; (c) aposentadoria, em geral insuficiente para atender a suas necessidades e que pode vir acompanhada de um sentimento de inutilidade, mergulhando o idoso no isolamento e na depressão; (d) perda de amigos e parentes, como também da condição econômica, o que faz com que o indivíduo idoso se sinta sem referencial, sem rumo; e (e) diminuição de contatos sociais em função da tendência individualista da sociedade, onde cada um se preocupa apenas em conquistar e preservar seu espaço, subestimando a importância dos encontros interpessoais.16
Assim, todas essas questões, associadas ao envelhecimento populacional observado em nível mundial, são determinadas pelo fato de a faixa etária dos 60 anos ou mais ser a que mais cresce em termos proporcionais, complicadas pelo fato de a transição demográfica se acompanhar de uma transição epidemiológica caracterizada pelo aumento da prevalência de doenças crônicas degenerativas. Consequentemente, estes fatores ocasionam, junto com as transformações corporais e sociais, mudanças psicológicas, como baixa autoimagem e autoestima, além das alterações afetivas e mentais, levando a dificuldades no enfrentamento das novas situações, que requerem apoio considerável.
Daí a necessidade de trabalhar esses indivíduos como foco, tanto nas perdas orgânicas quanto afetivas, dando-lhe auxílio no planejamento para o futuro e na adaptação aos novos papéis. É importante ressaltar que, para o indivíduo, a velhice é um período de crise, de transição e, portanto, não basta a atitude de aceitá-la. É necessário que seja enfrentada sem uma postura passiva caracterizada pelo simples ajustamento do individuo à nova situação, o que irá contribuir com a perpetuação do sistema social vigente, no qual o velho é discriminado.13
Por todas estas mudanças nos perfis demográficos e de morbi-mortalidade da população mundial ao longo do último século, espera-se que haja interesse crescente dos pesquisadores no cuidado do idoso, com foco centrado no âmbito da família e no envolvimento dos cuidadores originários deste núcleo.
O CONTEXTO DO CUIDADO: BREVE MARCO TEÓRICO
O “cuidador” e o “cuidado”
O “cuidar” é uma dimensão ontológica do ser humano. Para entender o ser humano e suas ações, é necessário nos basearmos no indivíduo cuidador do idoso, pois seus valores, atitudes e comportamentos no cotidiano expressam constantemente a preocupação com o (idoso) cuidado10. Nesse sentido, o cuidado é uma forma de “ser-no-mundo”.17 Como tal, o cuidar implica não apenas uma função, tarefa ou atividade, mas possui valor substantivo que traz em si uma alteridade que envolve respeito, sacralidade, reciprocidade e complementaridade.
Este ato, cuidar, é comum a todas as culturas, embora suas formas de expressão possam ser as mais variadas. Se buscarmos um ponto em comum a todos os povos, quanto ao contexto em que ocorre o cuidar, verificaremos que este parece ser a família. Esta instituição é quem tem se colocado de forma mais efetiva para executar o cuidado com o (seu) idoso, ou quando não o faz diretamente, assumindo a responsabilidade pela decisão do ato de institucionalizar este cuidado, repassa a tarefa a outro agente social, diante desta dificuldade e/ou impossibilidade de fazê-lo.
Esta situação foi observada no estudo realizado pelo SABE,18 no qual se verificou uma aceleração da dependência do idoso, com considerável proporção destes indivíduos demandando ajuda para realizar as tarefas diárias ligadas a sua sobrevivência, implicando necessidade de companhia para os arranjos domiciliares. Logo, um grande número de idosos demandou a presença de um acompanhante na residência para garantir sua integridade física e/ou, psíquica. Nesse sentido, a quem cabe o apoio, se não à família, a alguém, pago pela família (cuidador) ou a uma instituição pensada pela família? Reforçando a tese sobre o que se verifica nas diferentes culturas, quanto ao cuidado ser de responsabilidade da família, a resposta é óbvia. Por isso, a necessidade de instrumentalizar essa família para fazê-lo.1
Em sua essência, o ato do cuidar está contido em uma relação de obrigação e de responsabilidade para com a pessoa dependente e nas relações de proximidade e intimidade que a situação envolve. Esse papel se baseia em questões sociais de parentesco, gênero e idade, sendo o ato de desempenhar o papel de cuidador uma norma social influenciada pelos eventos socioculturais vivenciados. Assim, o sentimento de cumprimento de normas sociais – tais como reciprocidade e dever moral – e a necessidade de autopreservação, na busca por se evitar sentimentos de culpa, além da relação de empatia e ligação afetiva entre os indivíduos, são alguns dos fatores que levam um adulto a cuidar de alguém idoso.19
Estando a tarefa do cuidar baseada em expectativas sociais, desempenhá-la bem pode significar reconhecimento social, melhora na autoestima e no senso de realização pessoal do cuidador. Esta afirmativa fica evidenciada quando a reflexão se dá num contexto que considera os arranjos domiciliares que se instituem no sentido de referendar a necessidade em realizar o que se espera da família no cuidado com seu idoso.
Em outras palavras, como a família como um todo cuida do seu idoso? Como ocorrem os arranjos intergeracionais visando a atender a esta demanda? A qual(is) membro(s) da família cabe, ou por qual(is) membro(s) da família é assumida essa incumbência? Numa resposta geral a essas questões, verificamos em vários estudos a participação, única ou coletiva, de filho(a) e/ou, neto(a) nessa atividade.
Cumprindo a tarefa do cuidar, o cuidador passa, ou poderia passar, a sentir-se bem porque consegue fazer aquilo que se esperava dele em determinado momento de sua vida. No entanto, quando a tarefa perdura por muito tempo ou exige recursos de que ele, cuidador, não dispõe, este passa a sentir-se sobrecarregado. O indivíduo começa então a não mais perceber os aspectos positivos envolvidos nessa relação, na atividade de cuidar, e passa a achar que está somente “dando” e nada recebendo em “troca”, ou mesmo que aquilo que “recebe” é pouco se comparado à “doação” que realiza.20
Os dados apresentados pelo estudo SABE18 referendam diferentes estudos sobre a questão do cuidador, visto que esse sujeito passa a se sentir sobrecarregado e pouco recompensado diante de seu “sacrifício pessoal”.20Com isso, os conflitos se instituem neste grupo social, distanciando o compromisso familiar do cuidar e das necessidades individuais de cada membro familiar, pois nem sempre o ato de cuidar permeia ou permite a liberdade de decidir como, quando e quem é o responsável por fazê-lo.
COMO SE DÁ O ATO DE “CUIDAR”
Dentre as diferentes tarefas de cuidados, têm-se grande variação quanto ao que se exige do cuidador, considerando o esforço físico e mental exigido para sua execução. Algumas dessas tarefas podem ser exercidas apenas por uma única pessoa, enquanto outras podem requerer a ajuda de terceiros ou mesmo de equipamentos específicos. De acordo com a periodicidade, tarefas também podem ser classificadas dentre as que são realizadas diariamente, p. ex., as relativas a cuidados pessoais, e as que são realizadas esporadicamente, como o ato de levar o idoso a um médico.
Deve-se considerar, ainda, que para cada tipo de tarefa há uma demanda específica e, consequentemente, uma diferente percepção quanto ao ônus, a qual pode ser conflituosa devido ao exercício concomitante de papéis familiares e profissionais pelo cuidador21. Esse aspecto também foi observado no estudo SABE.18 Nesse estudo, verificou-se que a cada atividade instrumental ou básica da vida diária, evidenciava-se claramente a ausência de autonomia que a família ou o indivíduo cuidador tem para decidir como, quando e quem subsidiará a realização de cada atividade para com o idoso.
Por isso se faz premente realizar estudos na busca pela geração de informações concisas sobre como os envolvidos nesse processo podem administrar seu cotidiano individual e familiar no exercício do cuidar ou na decisão do transferir a responsabilidade do cuidado do idoso.
Quatro elementos percebidos como dificuldades inerentes à tarefa do cuidar são evidenciados como a seguir21: (a) acarretam ônus físico e financeiro, o que tende a se agravar com a evolução da doença do idoso; (b) não disponibilidade de informações suficientes para exercer o ato do cuidar, além da existência de poucos recursos sociais de apoio e da escassez de profissionais especializados para dar suporte e poucas fontes de apoio emocional; (c) a tarefa de cuidar rivaliza com o trabalho profissional ou mesmo com o papel familiar desempenhado anteriormente pelos cuidadores; (d) a dinâmica “cuidar-ser-cuidado” pode fazer aflorar sentimentos negativos antigos que estavam guardados, tornando a situação de difícil manejo.
A percepção do cuidador sobre o quanto estas tarefas estão afetando sua vida e sua rotina diária impõe consequências diretas sobre estas atividades, visto as avaliações subjetivas serem importantes determinantes da qualidade do cuidado proporcionado ao idoso. Por exemplo, cuidadores que se sentem sobrecarregados, injustiçados e/ou acumulando funções de mãe/pai, profissional e esposa/esposo tendem a desempenhar funções aquém de suas capacidades.
Percebe-se que as demandas do cuidado atravessam os limites do esforço físico, mental, psicológico, social e econômico. Quando a família e o indivíduo não conseguem encontrar alternativas viáveis, ou quando as habilidades e os recursos pessoais e familiares são insuficientes para o manejo desta situação, há uma forte tendência para que ocorra desorganização, desestruturação, trazendo consequências negativas para todas as partes envolvidas – cuidador, idoso e família.
A forma como a família e o cuidador em particular avaliam e manejam essa situação potencialmente conflituosa depende de muitos fatores. Dentre esses fatores, evidencia-se a existência de redes de apoio formais e informais e os recursos pessoais do cuidador. Nesses fatores também se incluem os conhecimentos e as habilidades para cuidar, as estratégias de enfrentamento, o significado do cuidar, a capacidade de manejo de situações estressantes, a forma de buscar conforto emocional, a religiosidade, a história do relacionamento com o idoso e a forma de encarar desafios e situações novas.22
Como se pode observar, o contexto do “cuidar” é bastante complexo, envolvendo diversas variáveis, incluindo os aspectos positivos associados ao cumprimento das tarefas e da execução do papel de cuidar. Para poder prestar uma assistência efetiva e adequada aos cuidadores, tem-se a necessidade de considerar todos os componentes envolvidos, incluindo as diferentes variáveis associadas a este processo e sua elevada importância, de maneira a não criar distorções que possam estabelecer preconceitos sobre a velhice e o cuidar neste novo campo da pesquisa científica.
Dentre as distorções a serem evitadas, é preciso inicialmente desconsiderar do contexto das pesquisas a visão errônea apontando a relação “cuidador-cuidado” somente como fonte de experiências negativas na dimensão física e emocional do cuidador e de que tais vivências sejam uma consequência direta e necessária da dependência do idoso.
CUIDADORES E QUALIDADE DE VIDA
As tarefas atribuídas ao cuidador do idoso – muitas vezes sem orientação adequada e o suporte das instituições de saúde – e alterações das rotinas e o tempo despendido no cuidado podem afetar sua qualidade de vida.23
Em 1999, quando da promulgação da Política Nacional de Saúde do Idoso (PNSI), foi recomendado que os cuidadores também deveriam receber cuidados especiais, considerando que a tarefa de cuidar de um idoso dependente é desgastante e implica riscos de tornar doente e igualmente dependente o cuidador.24 Tendo em vista os impactos que o cuidar de um idoso dependente acarreta sobre o cuidador, é de se esperar que a qualidade de vida deste seja afetada negativamente por tais circunstâncias.25 No entanto, essas necessidades de saúde dos cuidadores, mesmo reconhecidas pelos programas de saúde do idoso, são frequentemente negligenciadas pelos serviços de saúde.
Avaliando estas questões, temos como causas do cenário do cuidador doméstico modificações decorrentes de mudanças sociais, históricas e políticas, tais como: (a) aumento no número de separações, divórcios e novas uniões, o que poderá acarretar, no futuro, um grande número de idosos sozinhos ou com estruturas familiares complexas que dificultem a identificação do cuidador e a organização do cuidado por este prestado; (b) instabilidade do mercado de trabalho e movimentos migratórios nacionais e internacionais em busca de oportunidades de trabalho, levando muitas pessoas a envelhecerem sem a presença de seus filhos por perto; (c) participação crescente da mulher no mercado de trabalho, o que modifica sua condição de cuidadora em razão dos serviços que habitualmente realiza no domicílio.23
Neste sentido, os diferentes estudos apresentados evidenciaram que mais pesquisas precisam ser desenvolvidas para compreender de forma mais clara o contexto e o cotidiano do indivíduo cuidado e do seu cuidador, a fim de se reduzir o estresse dentro do processo de tomada de decisão na família diante do processo do envelhecimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta revisão bibliográfica buscou enfatizar uma temática de grande importância para o processo de envelhecimento do Estado brasileiro, qual seja, o estudo dos conflitos entre o cuidar e ser cuidado. Considera o processo decisório que este envolve dentro do âmbito familiar, em função do envelhecimento de seus membros, em especial os arranjos familiares que se constroem na perspectiva de atender melhor este indivíduo que necessita de cuidados, seja no âmbito familiar ou em instituiçöes especializadas.
Esta área de pesquisa ganhou relevância na medida em que o envelhecimento é compreendido de forma macro dentro do universo familiar, e a mesma é “empoderada” de maneira a atuar como agente de suas próprias mudanças e decisões. Acredita-se ainda que a melhor compreensão de todo o contexto por parte dos familiares envolvidos possa subsidiar a sedimentação de políticas sociais para relações de cuidado mais condizentes com a realidade vivenciada.
Tudo isto se fará necessário pelo fato de que, atualmente, as famílias são levadas a definir seus arranjos familiares priorizando a situação do “cuidador”, ou na impossibilidade de este ser efetivado, optando pela institucionalização do membro familiar idoso. Sendo assim, avaliar este processo decisório e todos os conflitos que são construídos no âmbito familiar, desde a questão econômica até a revisão de valores sociais e pessoais, permitirá compreender melhor o efeito do envelhecimento no âmbito da família.
Ainda como questões que precisam ser mais bem discutidas nas pesquisas sobre a referida temática, percebe-se: (a) a necessidade de compreender melhor as características socioeconômicas das famílias que estão vivenciando a situação de envelhecimento de seus membros; (b) a compreensão das decisões familiares advindas do processo de envelhecimento; (c) como essas decisões reduzem ou não os conflitos; (d) qual a influência dos arranjos familiares na qualidade de vida dos envolvidos; (e) como ocorre o processo de tomada de decisão para estruturação dos arranjos domiciliares.
Estas reflexões ainda pouco exploradas na literatura sobre a referida temática – qual seja, envelhecimento populacional e relações de cuidado – e se fazem emergentes para que, num futuro próximo, possamos ter dados mais eficazes para a construção de políticas sociais para o idoso, considerando a ampliação de sua autonomia e independência no mundo social, bem como serviços de suporte aos cuidadores familiares.
A meta mundial para o estudo do envelhecimento é preparar o indivíduo para envelhecer de maneira que este tenha condições de saúde (física, psicológica e cognitiva), condições econômicas e arranjos familiares com maior poder de decisão sobre o processo de envelhecimento em si. Como aspecto positivo dessa preparação para o envelhecimento, acredita-se que haverá menos consequências negativas sobre o processo decisório do indivíduo e das famílias envolvidas na ação de cuidar e ser cuidado e por conseguinte, assegurar a saúde dos envolvidos nesse cotidiano.
Os estudos existentes sobre a atividade do cuidar têm evidenciado a tendência de adoecimento dos envolvidos, ou seja, o cuidador, pois é vista como desgastante e estressante física e psicologicamente, muitas vezes pelo fato de o cuidador não ter garantias do aporte cotidiano na comunidade e da própria família para que o cuidado aconteça.
REFERÊNCIAS
1. Duarte YAO, Lebrão ML, Lima FD. Contribuição dos arranjos domiciliares para o suprimento de demandas assistenciais dos idosos com comprometimento funcional em São Paulo. Rev. Panam. Salud Publica/Pan Am. Journal Public Health 2005 ; 17( 5/6):378
2. Guimarães RM. Brasil: país de cabelos brancos. Rev. A Terceira Idade 2008 ;19 (43): 49-58.
3. Néri MC, Soares WL. Estimando o impacto da renda na saúde através de programas de transferência de renda aos idosos de baixa renda no Brasil..Cad saúde Pública 2007; 23(8) : 1845-56 [ Acesso em 12 set. 2008].Disponível em: htpp://news.bbc.co.uk/2/hj/europe/3093152.stm
4. Palloni A, Wong R, Pelaez M. Ageing in Latin America and the Caribbean: implications of past mortality [ Acesso em 26 jun 2009] Disponível em:http://www.un.org/esa/population/meetings/Proceedings_EGM_ex_2005/mceniry.pdf
5. *Wong R, Pelaez M, Palloni A, Markides K. Survey data for the study of aging in Latin America and the Caribbean. J. Cross-Cultural Gerontol 2007 set; 22 (3) : 263-85
6. Marques S. O idoso após acidente vascular cerebral: conseqüências para a família. Ribeirão Preto. Dissertação [ Mestrado em enfermagem fundamental], —Universidade de São Paulo ; 2004.
7. Mathias TAF. A saúde do idoso em Maringá: análise do perfil de sua morbimortalidade. São Paulo. Dissertação[ Mestrado em enfermagem] –Universidade de São Paulo; 2002.
8. Marmot M. The status syndrome. New York: Times Books; 2006.
9. United Nations. Department of economic and social affairs.:population division. New York : World population ageing; 2007.
10. Albuquerque SMRL. Assistência domiciliar: diferencial na qualidade de vida do idoso portador de doença crônica . São Paulo .Dissertação [ Mestrado em Medicina Social] — Universidade de São Paulo; 2001.
11. Jacob Filho W. Envelhecimento e atendimento domiciliar. In: Duarte YAO ; Diogo MJDE. Atendimento domiciliar: um enfoque gerontológico. São Paulo: Atheneu; 2005. p.19-26.
12. Veras R, Lourenço R, Martins CSF, Sanchez MAS, Chaves PH. Novos paradigmas no modelo assistencial no setor saúde: conseqüência da explosão populacional dos idosos no Brasil [ Acesso 25 Jun 2008]. Disponível em:http://www.abrane.com.br/download/premio.pdf
13. Jordão Netto A. Gerontologia básica. São Paulo: Lemos; 1997.
14. Carvalho Filho ET, Papaleo Netto M. Geriatria: fundamentos, clínica e terapêutica. São Paulo: Atheneu; 2000.
15. Carvalho Filho ET, Papaleo Netto M. Geriatria: fundamentos, clínica e terapêutica. São Paulo: Atheneu; 2000.
16. Zimerman GI. Velhice aspectos biopsicossociais. Porto Alegre: Artmed; 2000.
17. Boff L. Saber cuidar: ética do humano : compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes; 1999.
18. Lebrão ML, Duarte YAO. Saúde, bem-estar e envelhecimento : o projeto SABE no município de São Paulo. Brasília: OPAS; 2006.
19. Assis M, Hartz ZMA, Valla VV. Programas de promoção da saúde do idoso: uma revisão de literatura científica no período de 1990 a 2002. Ciênc Saúd Coletiva 2004; 3( 9):557-81.
20. Neri AL. Bem-estar e estresse em familiares que cuidam de idosos fragilizados e de alta dependência. In: Neri AL (org). Qualidade de vida e idade madura. Campinas: Papirus; 1993. p.237-85.
21. Neri AL, Sommerhalder C. As várias faces do cuidado e do bem-estar do cuidador. In: Neri AL, Pinto MEB, Sommerhalder C, Perracini MR, Yuaso DR. Cuidar de idosos no contexto da família: questões psicológicas e sociais. São Paulo: Alínea; 2002. p. 9-63.
22. Vieira EB. Manual de Gerontologia: um guia teórico prático para profissionais, cuidadores e familiares. Rio de Janeiro: Revinter; 1996.
23. Karsch UM. Envelhecimento com dependência: revelando cuidadores. São Paulo: Educ; 2004.
24. Brasil . Ministério da Saúde . Promoção da Saúde: Adelaide, Sundsvall, Santa Fé de Bogotá, declaração de jacarta, dede de megapaíses e declaração do México. Brasília: Ministério de Saúde; 2001.
25. Vitalino PP, Young HM, Russo J. Burden: a review of measures used among caregivers o individuals with dementia. The Gerontologist 1991; 31 (1) : 754-67.
Extraído de: http://revista.unati.uerj.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-98232011000200015&lng=es&nrm=iso&tlng=pt